Leia a íntegra da entrevista com o filósofo Pierre Lévy
Estudioso da cibercultura propõe utilização de linguagem universal na rede.
Projeto faz parte de desenvolvimento da chamada 'web semântica'.
G1 - Você está trabalhando com uma equipe em um projeto
novo, o IEML. Qual o problema que o IEML quer resolver?
Pierre Lévy - Digamos que, no curto prazo, há
um problema relativamente pequeno, chamado de problema da
operabilidade semântica. E também há um objetivo de longo prazo,
pra mim, que é resolver o problema da auto-referência e da
reflexibilidade da inteligência coletiva.
Então, o primeiro problema é a operabilidade
semântica. Obviamente, hoje em dia, todos os documentos e todas
as mensagens estão ligadas entre si pela internet, no
ciberespaço. Então há uma interconectividade física por conta da
internet. Mas ainda há uma divisão semântica, uma fragmentação
entre esses documentos.
Outro aspecto é que temos sistemas diferentes de
classificação das informações. Os computadores podem usar um
sistema de classificação, e se meu conteúdo é organizado por um
sistema diferente, as coisas começam a ficar complicadas. E
existem centenas de sistemas diferentes.
Por exemplo, nas bibliotecas, você pode organizar
os livros por disciplinas, por ano de publicação, por área
geográfica de interesse, e por aí vai. Em outra biblioteca, a
divisão será diferente, e aí é uma bagunça.
Os cientistas da computação criaram algo que é
bastante poderoso, usado pela famosa "internet
semântica", que é chamado de "ontologia". A
"ontologia" é uma rede de conceitos na qual as
relações entre um conceito e qualquer outro da própria
"ontologia" é bem definido. Portanto, os computadores
são capazes de raciocinar automaticamente sobre os conceitos da
ontologia.
Por exemplo, você está lendo um documento e
identifica que ele trata sobre os conceitos "x",
"y" e "z". Se você expressar essas idéias em
uma ontologia, o computador é capaz de identificar que este
documento está ligado a outros, e te ajudará a filtrar, navegar
e expandir seu acesso a conhecimentos correlatos. É algo muito
benéfico e poderoso.
saiba mais
O problema é que há muitos sistemas diferentes de ontologias.
Todo esse raciocínio automatizado, o uso de filtros e conexões,
geralmente é restrito a uma área do conhecimento. E, às vezes,
você esbarra em uma situação na qual em um mesmo domínio de
informações há várias ontologias diferentes. Diferentes
especialistas podem dividir as informações de formas nem sempre
compatíveis. E, esse é essencialmente o problema de
operabilidade semântica.
A linguagem que estou propondo pode ser traduzida
para diferentes línguas naturais, e pode expressar
classificações e ontologias de todas as áreas. Além disso, ela é
criada originalmente de uma maneira na qual os computadores
podem fazer várias operações utilizando esses termos. E não
apenas operações lógicas, como raciocínio automatizado, mas
também variações, rotações, conexões diferentes, como se uma
expressão fosse um número. Desta forma, é possível fazer
transformações geométricas com as informações em um espaço
semântico. Essa é a idéia básica.
As linguagens naturais são muito irregulares, e
têm um léxico muito ambíguo. Há sinônimos, homônimos, etc. A
linguagem que proponho é completamente artificial, segue regras
bastante estritas, de modo que permita a manipulação automática
das informações.
O que eu espero é que, utilizando essa linguagem,
sejamos capazes de fazer traduções automáticas com muita
facilidade. Ela funcionará como uma "chave" entre duas
línguas naturais, e vai facilitar a navegação e a filtragem de
informação, buscas e diversas operações que poderiam ser feitas
automaticamente. No final, ela vai aumentar a colaboração entre
estudantes e pesquisadores de disciplinas, culturas e línguas
diferentes.
Mas, como falei no começo, há um segundo objetivo,
que é o de ajudar no registro da inteligência coletiva no
ciberespaço. Para colocar de uma forma mais simples, o objetivo
é ajudar as pessoas a terem acesso a uma representação do que
está acontecendo na internet, do que está se falando, quais são
os problemas que as pessoas estão tentando resolver naquele
momento, etc.
Mapa da internet é impreciso, diz Lévy. (Foto: Wikipedia/Creative Commons)
Hoje em dia, não é possível obtermos uma boa representação da
inteligência coletiva da internet. Por exemplo, há uma imagem
bastante famosa que tenta representar a internet por meio de
diversos pontos ligados por traços coloridos brilhantes
(veja ilustração ao lado). As pessoas olham e
pensam: "ah, a internet é como um cérebro". Mas, na
verdade, essa imagem representa apenas os nós físicos da
estrutura da rede, e como é o fluxo quantitativo de informação
entre esses nós.
Mas, pra mim, a representação real da inteligência
coletiva não pode ser feita dessa forma, e sim por um mapa
qualitativo, que mostre o fluxo de conceitos, ideias, assuntos e
tópicos pela rede, e que tipo de relação semântica as pessoas
estão criando - por meio de seu comportamento coletivo na
internet.
Para essa representação, podemos até repetir a
imagem do cérebro e suas conexões, mas em vez de neurônios,
temos ideias. No lugar da corrente elétrica entre os neurônios,
teremos as relações semânticas de significado entre as ideias.
Essas relações são criadas pelas ações dos indivíduos.
É muito fácil criarmos uma representação do que
está acontecendo no espaço real, físico, mas no espaço
semântico, não sabemos. Não temos um sistema coordenado. Não há
uma ferramenta universal para medir, mapear e representar isso.
Portanto, o objetivo mais importante dessa linguagem é ser uma
espécie de sistema universal coordenado do espaço semântico.
G1 - Isso iria casar bem com o conceito de web em tempo
real, que tem como principal representante no momento o
Twitter. Você poderia medir como estão se propagando as
ideias, mas universalmente. Esse é o plano?
Lévy - Exato. Atualmente você não pode fazer
isso, já que há comunicação em diversas línguas. É completamente
fragmentado, você não tem uma ideia global da inteligência
coletiva.
Aliás, há pesquisas científicas sobre um mesmo
assunto que são feitas simultaneamente, mas em línguas
diferentes. Essa linguagem não serviria apenas para unificar o
conhecimento global, mas você poderia utilizá-la para pequenas
equipes, grupos de pesquisa e pessoas interessadas em um assunto
comum. Qualquer comunidade iria lucrar com isso.
G1 - E essa linguagem deve funcionar apenas com
documentos estáticos ou pode ser aplicada em algo mais
dinâmico, como o Twitter?
Lévy - Não sei exatamente quando poderei fazer
minha primeira demonstração da linguagem em funcionamento, pode
ser em um ano ou em dois anos, mas o plano é fazê-la funcionar
inicialmente no Twitter. Criar um filtro colaborativo de
pessoas, documentos e sites citados por pessoas no Twitter. Ou
seja, ela será bastante útil para o que chamamos de "fluxo
de informações" ou "web em tempo real".
Isso não quer dizer que ela deixará de ser útil
para depósitos de informação de longo prazo. Se você parar pra
pensar que quase todas as bibliotecas do mundo estão
digitalizando seu conteúdo e vão colocá-lo na internet, e que
cada uma dessas bibliotecas terá sistemas de organização
diferentes, isso pra mim é um problema.
G1 - O senhor afirma que o que estamos vivendo hoje em
dia é uma revolução maior do que a que se seguiu à invenção
da prensa tipográfica, e que estamos passando por um salto
na produção e divulgação de conhecimento. Do ponto de vista
da inteligência coletiva, o que fazem sistemas de
organização de conteúdo como o Google já não é suficiente
para organizar nossas ideias?
Lévy - Na verdade, são coisas diferentes. Mas
há uma semelhança importante: o que algoritmo de organização do
Google faz, o famoso "Pagerank", é levar em conta a
inteligência coletiva. Ele decide que um conteúdo é mais
importante se tiver mais links levando a esse conteúdo,
principalmente vindos de páginas igualmente relevantes, com mais
links que levam a essa referência. O Google leva em conta,
portanto, a inteligência coletiva das pessoas que estão
construindo a web.
Também estou tentando fazer isso. Mas de uma forma
diferente. O algoritmo do Google é baseado principalmente em
estatísticas. Portanto, é uma análise quantitativa. Eu não sou
contra uma computação quantitativa, é claro, mas o que eu quero
fazer é uma computação quantitativa em um espaço qualitativo.
Esse é meu "twist", por assim dizer.
Talvez eu esteja enganado, e isso nunca aconteça,
mas eu creio que se a humanidade realmente quer viver uma fase
de crescimento do conhecimento - e, como você apontou, a grande
revolução nas ciências naturais na Europa ocorreu após a
invenção da prensa. Não foi a única causa, é claro, mas foi a
base.
E eu estou convencido de que haverá, na próxima
geração, uma nova revolução científica, mas não nas ciências
naturais, mas nas ciências humanas. Hoje em dia, todos os dados
sobre o comportamento humano podem ser reunidos no ciberespaço,
o único problema é que ainda não temos a capacidade de explorar
essas informações. E se não tivermos um sistema coordenado no
espaço semântico, o espaço dos significados, não seremos capazes
de viver essa revolução.
Isso poderia ajudar na cooperação entre
disciplinas diferentes das ciências humanas, como psicologia,
sociologia, economia, linguística, comunicação, etc. Em todas
essas disciplinas, que atualmente têm conceitos diferentes, e às
vezes numa mesma disciplina, teorias diferentes, é muito difícil
construir algo capaz de abranger o todo e compreender o que está
acontecendo na sociedade.
G1 - O senhor usa o termo ciberespaço, que recentemente
foi "aposentado" por parte da comunidade
acadêmica, que alega que hoje em dia não há necessidade de
diferenciar o que ocorre no mundo "real" e na
internet. O senhor concorda com essa avaliação?
Lévy - Sinceramente, eu não tenho certeza que
essa discussão seja relevante. Por exemplo: hoje em dia ainda
usamos escrita em papel. Há alguma relevância em saber que um
texto está escrito em papel ou digitalmente? Pra mim, o virtual
fez parte do real desde o início, e quando nos comunicamos pela
troca de e-mails, por exemplo, não há uma diferença relevante em
relação ao tempo em que trocavamos cartas. Continuamos
escrevendo, enviando e lendo textos. É sempre parte de nossa
experiência. E a manipulação dos símbolos é uma parte importante
da experiência humana.
G1 - Como a indexação da inteligência coletiva pode
mudar a maneira que lidamos com o conhecimento?
Lévy - Precisamos de uma grande revolução
epistemológica. Os dados estão lá, mas em uma quantidade
absurda. Portanto, não temos como explorá-los manualmente, lendo
tudo, por exemplo. Precisamos, portanto, automatizar a
exploração desses dados. Mas se, por exemplo, os dados estão
escritos em 300 línguas diferentes, e estão indexadas em 250
metodologias diferentes, essa automatização não vai funcionar.
Portanto, o que precisamos é de uma metalinguagem,
que possa ser completamente manipulável por sistemas automáticos
e, ao mesmo tempo, possa ser usada para expressar qualquer tipo
de ideia, ponto de vista ou teoria. Se ela limitar a expressão
de uma teoria, ou de uma interpretação, não serve. Pelo
contrário: ela deve ajudar a aumentar a diversidade de pontos de
vista. Talvez não seja a língua que eu criei que será a base
dessa revolução científica, mas haverá algo nesses moldes. E eu
acredito que devemos iniciar em breve as primeiras tentativas.
A dificuldade dessa tarefa é que é necessário ter
um conhecimento muito amplo em ciências humanas, estar ciente da
complexidade das culturas, dos significados, e ao mesmo tempo
ser capaz de lidar com computação. É preciso ter essas duas
habilidades para realizar isso. E, geralmente, os engenheiros
são muito bons em matemática e em lógica, e às vezes em física.
Mas em termos de semântica, não. Eles confundem lógica e
semântica, que são coisas bastante diferentes. A lógica é sobre
a verdade de uma proposição particular, e a fusão de verdades
que são derivadas de uma verdade original. É uma discussão sobre
"verdadeiro" ou "falso". A semântica é muito
mais complexa do que isso, do que "verdadeiro" ou "falso".
Lévy - No momento, eu chamo essa pessoa de
"engenheiro semântico". Há um lado de engenharia e um
lado de ciências humanas. É algo que vai requerer um treinamento
especial, provavelmente, mas como todas as profissões. Eu
reconheço que, no momento, esses profissionais não existem.
Algumas pessoas estão se autodenominando "arquitetos da
informação" ou "engenheiros de conhecimento".
Então já surgem, de forma dispersa, os primeiros núcleos de
profissionais dessa área, o que significa que não vamos partir
do zero. Mas, claramente, mesmo esses profissionais de agora
precisarão evoluir. Mesmo porque estou falando do futuro, de
coisas que não existem ainda agora.
G1 - No futuro, portanto, haverá uma demanda por esse
tipo de profissional. Que tipo de formação deve procurar um
jovem que tem interesse em trabalhar nesta área?
Lévy - Um velho filósofo não deve dizer a uma
criança o que ela deve fazer...No momento, eu é que estou
tentando entender o que elas estão fazendo. Mas eu diria que
habilidade técnica não é o suficiente, e o conhecimento sobre as
relações humanas é importante. Quando você é jovem, você pode se
concentrar em entender as questões técnicas, mas quando você
envelhece percebe que as questões humanas são muito mais
complexas do que você imaginava antes.
G1 - E o presente da internet? Quais são suas
ferramentas prediletas no momento?
Lévy - No momento, eu tenho me interessado
bastante pelo Twitter,
porque é tecnicamente muito simples, mas social e
intelectualmente muito complexo. Você tem que escolher quem você
segue, precisa descobrir como ler tudo o que essas pessoas
escrevem... No momento eu sigo apenas cerca de 115 pessoas, mas
já é difícil pra mim ler tudo.
G1 - Que tipo de profissional será capaz de ajudar a criar essa língua? Quem serão as pessoas que vão trabalhar como "bibliotecários" do futuro?
Outro serviço que eu uso é o Delicious. É uma forma de organizar a memória. Porque o Twitter é bom para o fluxo de notícias, para estar sempre antenado no que está acontecendo, mas o delicious é bom para organizar a memória de longo prazo, e também para descobrir pessoas que estão interessadas nos mesmos assuntos que você.
Também participo do Twine, que é um serviço que utiliza
tecnologias da web semântica atual. Eles organizam os assuntos
por ontologia, e quis observar, em primeira mão, como o site
funciona. E eles não resolvem todos os problemas, de certa forma
é um pouco decepcionante.
G1 - Minha impressão é de que o Twine ainda não conta
com um número suficiente de usuários para inserir e
organizar uma quantidade relevante de informações.
Lévy - Durante vários meses eu era uma das cem
pessoas que mais adicionava informações ao Twine. Encontrei
pessoas interessantes por lá. Em todos esses serviços você tem
um aspecto social muito importante, então você descobre
indivíduos. E também é muito útil estar registrado em um
"twine" de informações, para se manter atualizado
sobre aquele assunto específico. Já descobri coisas no Twine que
acabei depois postando no Twitter.
Também participo do Facebook, porque hoje em dia
você não pode mais ficar de fora. E é algo interessante, porque
as pessoas ficam postanto fotos e vídeos delas próprias, acaba
sendo um ambiente para amigos, é menos profissional. Meu Twitter
é um ambiente profissional, discuto informações científicas. Já
meu Facebook é mais para diversão. Também tenho o hábito de
testar novos serviços de busca, para ver o que eles oferecem de
diferente do Google.
Para mim, é muito importante estar ativo em todas
essas ferramentas para poder sentir o que está acontecendo na
internet, e não ficar apenas na teoria. Gasto pelo menos duas
horas por dia nessas ferramentas sociais e em blogs."
Entrevista retirada na íntegra de Globo em 29/08/2009.
Fonte: Del.icio.us/joanaviana